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Tônus Postural e Afetividade (Wallon)

por Hans Machado

Introdução

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“Um dos passos mais difíceis para a psicologia transpor é aquele que deve unir o orgânico e o psíquico, a alma e o corpo.”[1]   

–  Henri Wallon

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Respire algumas vezes. Enquanto interage assim com o ar, observe seu abdomen e torax. Agora observe os movimentos dos teus olhos enquanto lê as próximas palavras, e responda: quem é que se move? O corpo respira ou é você? Os olhos enxergam? O tema aqui é amplo e qualquer ensaio de resposta implica uma visão de homem, de mundo e de sociedade. Seus desdobramentos atingem inevitavelmente questões relativas à saúde, educação, moral e ética.

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O Ocidente respondeu estas questões por meio de uma oposição, corpo vs. alma, e cravou uma cisão nos pilares do nosso pensamento. Esta forma de pensar produziu várias dicotomias de grande poder estruturante como sujeito x objeto, razão x emoção ou ainda indivíduo x sociedade. Esta herança que fragmenta o fenômeno permeou nossas técnicas, nossas instituições, nossa linguagem, nossas teorias científicas, nossas terapias, nossa autoimagem e consequentemente todo o nosso viver diário. Não há dúvida, estamos cindidos! Felizmente, no entanto, uma reação integradora se faz cada vez mais presente em vários âmbitos. São abordagens que visam amenizar os graves problemas decorrentes das excessivas fragmentação e especialização, buscando reconstituir um ser humano integral em vários níveis, indivíduo, sociedade, meio-ambiente.

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Neste artigo apresento uma contribuição conceitual a este esforço de integração. Trata-se da visão sistêmica de Henri Wallon (1879–1962),  pioneiro da Psicologia do Desenvolvimento e um dos fundadores da psicologia genética. Como filósofo, médico, psicólogo e pedagogo, este pesquisador gerou uma teoria ampla e integrativa. Sua visão articula a história da civilização, o percurso da evolução das espécies e o processo de desenvolvimento ontogenético, levando em consideração desde a a fisiologia até a sociologia. Como resultado Wallon nos ofereceu uma visão original da psicogênese da pessoa e uma compreensão da intima relação entre emoção, cognição e movimento.

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Para ele, não é possível isolar sujeito e objeto, fins e meios, circunstância e mecanismo, interno e externo, eu e não-eu, nem mesmo vida e mundo inerte. O sistema deve ser estudado em seu equilíbrio sem fragmentá-lo. Compreender plenamente as implicações das concepções centrais da obra de Wallon é um desafio intelectual para nossas mentalidades acostumadas a dicotomias. Vencer este desafio é sem dúvida abrir portas para um fazer mais pleno.

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Com este anseio, apresento aqui de forma sucinta a perspectiva walloniana de emoção e como esta se relaciona com o corpo, a consciência e a sociedade através das atitudes.  Durante a leitura vale a pena ter em mente as duas perguntas que conduziram Wallon em suas pesquisas: qual é a natureza dos vínculos humanos e qual é a origem da consciência[2]. Wallon concluiu que a resposta a estas duas indagações está na afetividade que emerge da própria corporeidade. Cada pessoa carrega em si sua sociedade, manifestando-a em movimentos, pensamentos e emoções. Esta comunhão constitutiva se dá durante o processo de desenvolvimento, desde as interações musculares e emocionais até a absorção das ferramentas e dos símbolos. A corporeidade humana revela-se afetiva e social desde sua origem, durante seu desenvolvimento e em sua permanência.

 

 

I – AFETIVIDADE E MOVIMENTO

 

 

Vínculo primordial de Relação com o Mundo

 

Nossa relação com o mundo não se dá de início como uma imagem consciente produzida pelos sentidos a partir de estímulos extra-sensoriais. Estas imagens, que são para nós corriqueiras, surgem apenas  tardiamente tanto na evolução das espécies quanto no desenvolvimento de uma criança. Para Wallon, nosso contato com o mundo deve ser explicado pela compreensão de forças mais profundas e geneticamente anteriores. A natureza da relação com o real deve ser buscada nas necessidades mais essenciais do indivíduo e em seus interesses mais íntimos, ou seja, na afetividade e não na percepção já elaborada a partir dos sentidos. O fator afetivo representa um vínculo mais primitivo com o mundo, e sua origem não está nas imagens do mundo externo.[3] Não está na percepção do exterior mas num tipo especial de sensação referente ao estado do organismo ele mesmo. Qual seria então a natureza da afetividade?

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A primeira manifestação afetiva, diz Wallon, é a emoção. Para compreender o que é emoção e qual a função que ela exerce no organismo humano e na sociedade, Wallon pesquisou sua origem e seus desdobramentos evolutivos em três linhas históricas: o desenvolvimento das espécies, o desenvolvimento da sociedade humana e o desenvolvimento da criança. A emoção seria um fenômeno orgânico, não-simbólico, hormonal, visceral e muscular.  Para ele a emoção é uma função da vida, está submetida ao nível da ação e, portanto, está em estreita relação com os movimentos. Geneticamente, a emoção teria surgido a partir do movimento, ou melhor, a partir das funções posturais, aquelas que possibilitam a tomada de posição diante do mundo. A Função Postural, como denomina Wallon, é a responsável pela manutenção do equilíbrio do organismo e por sua orientação na atividade, nos campos gravitacional e social.

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Seria difícil superestimar a importância psicológica da orientação espaço-temporal. Ela é um pré-requisito para qualquer atividade, movimento ou pensamento. Imagine-se num momento em que você não saiba onde é em baixo ou em cima! Não haveria nenhuma ordem, nenhuma percepção seria possível, nenhum movimento, nenhuma direção, nenhum objetivo. Não pode haver organização psíquica sem uma orientação em relação ao campo gravitacional e à sucessão temporal. É por meio dos movimentos que as funções posturais garantem o equilíbrio e a orientação do organismo.

 

 

Emoção, um Elo Evolutivo

 

Para Wallon o significado de uma função deve ser procurado em sua relação com a ação total e com os resultados obtidos por esta ação dentro de um contexto. É só na reação de conjunto que se pode conhecer o significado das partes. Uma das bases do pensamento walloniano é a análise de cada função levando-se em conta sua história, seu contexto e a reação de conjunto.

 

O estudo analítico de uma função exige que ela seja sempre comparada ao estado anterior de evolução, no qual seus órgãos não estavam ainda diferenciados, de modo que sua unidade se baseava na unidade global de um comportamento muito mais simples, assim como às manifestações mais totais de sua atual destinação. (As origens do caráter na criança, p. 146)

 

Considerando a função do movimento na vida de um organismo, podemos compreender o ponto de vista walloniano segundo o qual a emoção é parte dos movimentos. Ele percebeu na emoção um elo evolutivo entre a capacidade de deslocar-se no espaço e a capacidade de representação. Procurou mostrar que sem a emoção a representação não teria surgido. Ela foi e é um elo evolutivo entre o movimento e a imagem.[4] 

 

“Ela é primitivamente a modelagem do organismo por suas disposições próprias; é essencialmente uma atividade proprioafetiva e procede das funções posturais cuja existência era ignorada até recentemente. As emoções são a sua realização mental; retiram dela impressões da consciência.”  (A atividade proprioplástica, p. 145)

 

 

A Natureza do Movimento

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Quando pensamos em movimento normalmente nos referimos ao movimento visível de deslocamento de um corpo no espaço, ou seja, àqueles movimentos que agem sobre o mundo físico. No entanto, este é apenas um dos aspectos do movimento, aquele que Wallon denomina aspecto cinético. Boa parte das pesquisas sobre o movimento limita-se apenas ao estudo deste aspecto e acaba por gerar distorções na compreensão da natureza dos movimentos.  Este é o caso, por exemplo, dos trabalhos realizados por Piaget que, estudando a adaptação do organismo ao mundo e aos objetos, procurou demonstrar a relação entre os movimentos cinéticos e o desenvolvimento da inteligência.[5] Sem dúvida o movimento tem uma característica cognitiva que, uma vez interiorizada, permite operações mentais. Mas seria esta sua principal natureza? O que acontece com o organismo em sua dimensão mais íntima e afetiva enquanto ele se movimenta?

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O problema sem dúvida é encoberto pela ilusão que o adulto tem de agir com seu corpo, e mais precisamente com seus órgãos de relação, como um instrumento mais ou menos dócil à suas intenções sendo simplesmente subordinado a elas. (Mouvement et psychisme, p. 29)

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A ilusão do corpo como um instrumento, aliada a uma tradição intelectualista e dicotômica, é o que possibilita a abstração do movimento em relação ao movente e permite o estudo da atividade motora apenas em seu aspecto cinético. O outro lado desta mesma ilusão é o estudo de aspectos psicológicos humanos sem levar em conta sua base orgânica e corporal.

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Função Tônica e Atividade Proprioplástica

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É necessário notar que quando um organismo se move ele se contrai e se relaxa. Com um olhar perspicaz Wallon revelou a importância não só do aspecto cinético do movimento mas sobretudo a importância do aspecto tônico. Nas espécies mais arcaicas estes dois aspectos estão indiferenciados. Isto pode ser observado em muitos organismos unicelulares. Nestes animais os movimentos são possíveis pela capacidade que eles têm de alterar a forma de seus corpos. O deslocamento no espaço acontece pela variação da “tonicidade”. Estas funções foram diferenciando-se ao longo do processo evolutivo e geraram dois sistemas bem distintos: a função cinética e a função tônica.

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A Função Cinética é centrífuga, ou seja, orienta o organismo ao ambiente externo. Faz parte daquilo que Wallon chama de vida de relação. Tem um caráter instrumental que se revela na manipulação dos objetos e está ligada  principalmente aos músculos estriados da musculatura esquelética.

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O aspecto tônico do movimento diferenciou-se num sistema de natureza centrípeta. A Função Tônica volta-se ao meio íntimo do organismo, tendo um caráter afetivo e não instrumental.[6]  Ela dá forma e consistência ao organismo regulando seu tônus muscular. Ela engloba tanto a musculatura esquelética quanto os músculos lisos da musculatura visceral. Wallon pesquisou este sistema centrípeto, muscular- emocional, e expressou a natureza de seu funcionamento dando-lhe o nome de atividade proprioplástica. A emoção é uma atividade,  uma atividade auto-modeladora. O termo “proprioplástica” evidencia a natureza orgânica deste funcionamento e sua relação tanto com a capacidade plástica  do organismo como com as vias sensitivas que lhe informam sobre sua própria forma.

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A musculatura dá forma ao organismo e, ao contrair-se ou relaxar-se, ao esticar-se ou encurtar-se, ela faz o movente, ele mesmo, passar por estes estados. Ou melhor, ela é o organismo movendo-se, modificando-se, adaptando-se. Com a emoção surgiu a capacidade de perceber estas alterações em si próprio,  a capacidade de monitorar e informar-se não sobre o ambiente circundante, mas sobre seu próprio estado interno, sua composição, seu bem ou mal-estar. Ela oferece uma primeira percepção sobre a qualidade do estado do organismo e do momento vivido.

Ao longo da evolução a atividade tônica adquiriu uma certa autonomia e destacou-se do movimento instrumental sobre os objetos.  Transformou a mobilidade em imobilidade, o movimento em atitude. A Função Tônica administra, por assim dizer, os estados internos e próprios do organismo. Ela representa o domínio das emoções e põe em jogo um tipo de sensibilidade exclusivamente subjetiva, voltada para o equilíbrio do organismo e seu tônus muscular.

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No homem a atividade tônica e a atividade cinética apresentam um alto grau de especialização e são controladas por diferentes centros nervosos. Ambas têm uma origem comum mas diferenciaram-se a ponto de serem, em alguns casos, antagônicas. Casos por exemplo em que a função tônica gera demasiada rigidez ou flacidez sendo uma restrição ao movimento fluido e preciso.[7]

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É claro no entanto que estes dois sistemas são inseparáveis e não podem ser compreendidos de modo isolado.[8]  A atividade tônica serve como suporte às atividades cinéticas. Através da regulação do tônus, ela proporciona a estabilidade necessária para a execução e sustentação dos movimentos cinéticos.  Sua grande importância psicológica é o papel que desempenha na organização das atitudes.[9] Vamos considerar brevemente a noção de  esquema corporal para entender o que é uma atitude e sua função psíquica a partir da regulação tônica.

 

 

 

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II – CONSTITUIÇÃO E EXPRESSÃO

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Esquema Corporal: o solo híbrido da autoconsciência

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O esquema corporal é a matéria prima para a função postural e um pré-requisito para o estabelecimento das atitudes. No início da vida de uma criança as relações entre as modalidades sensoriais não estão prontas e em conseqüência disto a delimitação do próprio corpo e do mundo exterior é ambígua e indecisa, tudo parece estar indiferenciado numa subjetividade nebulosa. A criança dependerá do exercício de movimentos para relacionar e coordenar suas diversas impressões sensoriais  e poder gerar a imagem de um todo coerente a partir de tudo aquilo que sente. É através da interação com o mundo que ela construirá sua percepção do próprio corpo e daquilo que a rodeia. Aos poucos o esquema corporal vai sendo formado. (Devido à polêmica que por vezes surge em torno do uso dos termos “esquema” ou “imagem”, destacamos que quando Wallon utiliza o termo “esquema corporal” ele se refere ao mesmo fenômeno descrito por Paul Schilder como “imagem corporal”)[10].

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Para Wallon a percepção do existir está diretamente ligada às sensações do corpo. As impressões proprioceptivas estão na base do sentimento de realidade. A importância do esquema corporal é, portanto, total.[11] Ele está alicerçado principalmente sobre as sensações orgânicas que informam o ser sobre sua própria  presença, sobre sua forma  e  sobre o espaço que ocupa. Além do espaço imediatamente delimitado pelo corpo, ele anexa a si mesmo uma porção do espaço exterior, aquela imediatamente relacionada aos movimentos e à manutenção do equilíbrio. A formação do esquema corporal é imprescindível como referência de ser em relação à qual os outros entes do mundo terão realidade.

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O esquema corporal não se constitui apenas a partir da propriocepção. Todo movimento se dá em relação a objetos no espaço e assim a cinestesia se abre para o mundo das coisas. A percepção do espaço do corpo é distinta da percepção do espaço exterior onde estão os objetos.  O primeiro espaço está ligado ao sentimento de existência própria (vida emocional) e o segundo possibilita o sentimento de uma ordem objetiva e a sensação de coexistência com o mundo (vida de relação). A construção destas duas percepções de espaço se dá conjuntamente e ambas fundem-se na constituição da pessoa. Mesmo assim podemos dizer que elas referem-se a aspectos distintos da constituição do ser.[12]

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O esquema corporal, como referência primordial de si, comporta ainda maior complexidade. A cinestesia abre-se não somente para o mundo dos objetos mas também para o mundo das pessoas, ou seja, para o ambiente humano. Veremos mais adiante  alguns aspectos importantes das relações intra-grupais e como elas influenciam a formação do esquema corporal. Saliento por hora que a correspondência entre os aspectos visuais e cinestésicos do movimento não está pronta no nascimento e precisará ser estabelecida nas experiências, por meio de contraste ou concordância à medida que a criança se movimenta e explora o mundo em seus espaços, objetos e pessoas.  Para Wallon o esquema corporal  exprime ainda os reflexos de defesa e o dinamismo motor. É uma espécie de fundo para o estabelecimento das atitudes e a ele está ligada a sensação do potencial próprio em meio às atividades.

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Atitude: posicionamento e fundamento para a consciência

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O esquema corporal e os mecanismos reguladores das atitudes são fatores elementares da vida psíquica e estão na raiz da formação do eu.[13]  Atitude é a atividade de estar e de posicionar-se, é o ato de saber-se em pé, deitado ou sentado, em perigo ou protegido. Implica tanto uma auto-referência quanto uma orientação em relação à situação atual. A auto-referência é fornecida pelo esquema corporal e a orientação em relação à situação e ao campo gravitacional é garantida pela Função Postural e diz respeito tanto ao ambiente físico quanto ao ambiente social. (Wallon utiliza de modo intercambiável as expressões Função Postural e Função Tônica).

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É através das atitudes que nos unimos ao mundo. Primeiramente elas apresentam uma atenção voltada à integridade própria do organismo, ao seu estado de equilíbrio e de segurança. Compreende as primeiras e mais fundamentais reações para manter-se vivo e para poder lidar com as possibilidades e com os riscos do ambiente.

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“As atitudes estão na base de nossas relações com o mundo exterior. Na presença das situações que se impõem a nós, desenvolve-se uma atitude correspondente que prepara as reações apropriadas, mas que pode também se prolongar e finalmente traduzir-se, não em movimentos, mas em consciência.” (La sensibilité affective: moi et non-moi, p. 108)

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Uma atitude é o estado de organização que prepara o organismo para a ação. Ela contém em si o movimento em potência e a intenção motriz, refletindo assim as disposições psíquicas pessoais no momento atual, disposições estas que devem realizar-se em movimento frente às exigências da situação. O campo gravitacional, as condições sociais e a atividade em curso são as forças que permeiam a organização tônico-postural das atitudes. É através de uma espécie de síntese situacional que as elas emergem definindo a posição do indivíduo no mundo e proporcionando um estado tanto de coesão interna como de coesão entre si e os outros.   

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Além deste aspecto ligado ao desenrolar das ações, as atitudes estão relacionadas ao surgimento evolutivo da autoconsciência.  Ao prolongar-se, uma atitude suspende o fluxo da ação e prolonga no tempo o eco das disposições psíquicas, sustentando o sentimento de coerência própria e de unidade realizadora.[14] A atitude suspensiva é possível graças à Função Tônica e é a atividade que tendo nascido das emoções possibilita o surgimento da consciência.[15]  Através desta noção de atitude, que envolve os conceitos de emoção e esquema corporal, Wallon procura evidenciar não só as bases corporais da consciência e da afetividade mas também as relações genéticas entre uma e outra.

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Ambiente humano - dependência e expressividade

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Como dissemos, esquema corporal forma-se através das experiências sendo alimentado pela cinestesia que se abre tanto para o mundo dos objetos como para o mundo das pessoas. Vamos considerar agora a permeabilidade do esquema corporal ao ambiente humano. O bebê humano pode apenas emocionar-se e é através da emoção que ele começa a atuar no mundo. O mundo em que ele atua não é o mundo material já que ele ainda  não consegue coordenar seus movimentos e nem mesmo reconhece os objetos que lhe cercam. Seu primeiro campo de atuação é o mundo humano. É ali que o bebê age movimentando não objetos mas as pessoas por meio de suas emoções. 

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Sob a dependência inicialmente exclusiva de seus  semelhantes, e não do meio material, ele desenvolverá suas aptidões de expressão bem antes daquelas de realização, e elas não deixarão mais de misturar-se a todas suas atividades. (La sensibilité affective: moi et non-moi,  p. 104)

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O primeiro ano de vida é um período em que predominam as emoções. O bebê, incapaz de  movimentos coordenados, vive num estado de total imperícia e dependência e sua expressividade é o seu maior poder. Ao emocionar-se ele expressa seus próprios estados e movimenta através de sua expressão o seu mundo inicial, os adultos que lhe rodeiam. A expressão é o seu campo de ação inaugural e progressivamente ele desenvolve seu comportamento emocional a partir da vida mais impulsiva dos três primeiros meses.  

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A precoce expressividade infantil é potencializada e modelada pela cultura. Por volta dos seis meses de idade o bebê humano já tem um leque bem desenvolvido de emoções fundamentais, um vocabulário emocional de relações. A porção de seus desejos que a criança aprende a conhecer e expressar é aquela que faz parte das condições e formas atuais de existência do seu grupo social.[16] No início do processo a criança vive uma simbiose afetiva e total dependência, daí a profundidade da penetração social no desenvolvimento psíquico da criança.

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Seu grupo social constitui  um  campo  emocional  e  técnico  e sua inserção neste grupo possibilitará seu desenvolvimento nas dimensões da motricidade, afetividade, caráter e conhecimento.  O processo se complexifica à medida que novas funções psíquicas tornam-se ativas na criança, o que ocorre concomitantemente à incorporação dos instrumentos sociais. Durante seu longo período de desenvolvimento a consciência individual é modelada pelo ambiente coletivo.

 

Ele é um ser cujas reações precisam ser completadas, compensadas, interpretadas. Ele próprio incapaz de fazer qualquer coisa é manipulado pelos outros e é nos movimentos dos outros que as suas primeiras atitudes vão tomar forma. (O papel do outro na consciência do eu, p. 153)

 

As emoções, os hábitos sensitivo-motores, as atitudes e a noção de um “eu”, são todos fenômenos  possibilitados e modelados pela vida social. A influência que a mãe exerce é de extrema importância mas a ela não pode ser atribuída exclusividade. Todas as pessoas que interagem com a criança influenciam-na de maneira significativa. O ambiente emocional em que o bebê está imerso é composto por todos os atores do grupo e modela as atitudes do bebê que acaba por refletir em si mesmo as pessoas que o cercam e sustentam.

 

 

 

O personagem próprio: Simbiose, conflito e diferenciação.

 

O conjunto dos traços pessoais expressos na repetição das atitudes, formam o que Wallon chamou de caráter. Seria o índice individual de cada pessoa, sua estrutura psíquica única. Mas, como vimos, as atitudes posturais manifestam ao mesmo tempo os traços individuais e as características sociais. Em seus músculos a criança sente o outro misturado com o que é propriamente seu. Como então o indivíduo pode identificar esta parcela propriamente sua no meio de todas as sensações que vivencia em suas atitudes?  

 

 

(...) é preciso entender por caráter precisamente o que distingue os indivíduos entre si, mesmo quando suas condições de existência ou os resultados da sua atividade não parecem diferir muito. (As origens  do caráter na criança,  p. 19)

 

“Mais particularmente, trata-se de ver como a criança, ao se desenvolver, elabora de etapa em etapa esta espécie de índice individual que se chama caráter.” (As origens do caráter na criança, p. 26)

 

O caráter não vem pronto, não é uma identidade psíquica ou biológica. Surge na interação com o e meio e não pode ser entendido isoladamente. Trata-se de um complexo indissociável formado pelas disposições do sujeito e pelas situações que vive. Ao mesmo tempo em que absorve as características afetivas, motoras, cognitivas e técnicas de seu meio, a criança vai diferenciando-se e descobrindo-se em ação. Chega o momento em que ela adquirir a noção de um “eu” com uma imagem corporal correspondente e adota para si um personagem que crê ser seu. A prosódia de seu comportamento, suas tonalidades, seus movimentos e posturas, tornam-se cada vez mais claramente estabelecidos.

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A imitação tem um papel importantíssimo neste processo de diferenciação. Durante a imitação a criança experimenta posturas e através destas opera “um decalque dos outros” em si mesma[17]. Na descrição de Wallon, ela empresta sua própria sensibilidade cinestésica à impressão visual que percebe dos outros e associa esta imagem a si. Supõe que os outros sentem aquilo que ela sente em seu corpo e gera uma imagem visual de si própria em função da imagem que vê dos outros. Sua autoimagem traz como referências estruturantes a imagem das pessoas ao seu redor.

Aqui é importante voltarmos a falar sobre a correspondência  entre os aspectos visuais e cinestésicos.

 

 “Nas nossas civilizações, por razões de objetividade experimental, a ordem visual antecipou-se a todas as outras. Mas noutros lados ou em certas circunstâncias, são possíveis outras formas de identificação, outros tipos de relações existenciais podem levar a melhor sobre as relações do espaço óptico. Particularmente a sensibilidade proprioceptiva pode dar à imagem do nosso corpo outros aspectos ou mesmo uma outra topografia que não é a do testemunho dos nossos olhos.” (Cinestesia e imagem visual do próprio corpo na criança, p. 119)

 

A síntese dos elementos proprioceptivos e visuais atribuídas ao sentimento de “eu” é muito variável e está diretamente submetida ao modo de vida da sociedade. No trecho acima Wallon menciona “objetividade experimental” como um motivo da preponderância visual nas relações existenciais, mas é possível identificar muitos motivos para a atual ditadura da imagem visual que frequentemente chega a ser opressiva no sentimento de si. Por outro lado, Wallon indica que as relações existenciais podem utilizar outros arranjos das modalidades sensoriais. Quando a intensidade das sensações proprioceptivas é maior, modifica-se profundamente a sensação de ser. Isto é o que ocorre quando a discreta sensibilidade proprioceptiva é intensificada em práticas sagradas ou seculares através de um jogo das possibilidades articulares e de variações do equilíbrio[18]. Wallon frisou com frequência que a cinestesia efeitos afetivos e subjetivos profundos e chegou a indicar que mudanças neste fundamento da vida psíquica podem levar a modulações significativas da personalidade[19].

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No processo de psicogênese da pessoa, por volta dos três anos de idade, chega o momento em que a criança começa a se preocupar com um personagem que lhe pertença e a partir daí suas próprias atitudes passam a ganhar relevo em sua atenção. Nesta etapa, chamada por Wallon de crise da personalidade, ela adota uma atitude combativa entrando propositadamente em conflito com o meio. Através de várias formas de oposição ela começa a gerar e identificar delimitações em seu mundo psíquico.  As qualidades dos parceiros do grupo em que vive servem como modelos e impõem exigências à pessoa que está insurgindo-se contra a indiferenciação. Da matéria original indiferenciada destaca-se um “eu” e surge também um “outro”.

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É através de um vai-e-vem entre a imagem própria e a de seus parceiros-oponentes que a criança passa a distinguir-se dos demais.  É com o sentimento de personalidade e suas reações correspondentes que o sistema nervoso regula seu tônus postural expressando no corpo a imagem que a pessoa tem de si. Ao adaptar-se, ela adota um porte correspondente ao personagem que julga ser o seu[20].

 

 

Corporalmente Histórico e Social

 

Wallon procurou mostrar como o ser humano é intimamente coletivo, como a corporeidade humana está afetivamente vinculada e modelada pela cultura e  como o organismo tende ao social da mesma forma que tende ao estado de equilíbrio. Corpo, sujeito e sociedade modelam-se mútua e dinamicamente ao longo dos três tempos históricos (Filogênese, Civilização e Ontogênese) sem apresentar um estrutura obrigatória de relações. Renè Zazzo, um dos principais seguidores de Wallon, deixa esta concepção bem clara na seguinte passagem:

 

Não há harmonia pré-estabelecida, diz Wallon, entre o desenvolvimento da criança e a sociedade. (...) Nem harmonia nem lacuna. (...) As noções de harmonia e lacuna pertencem ambas a uma maneira de pensar metafísica, que apresenta de início duas entidades, dois absolutos – o indivíduo e a sociedade, ou melhor, o orgânico e o social.

 

(...) Sem dúvida há um organismo com suas próprias leis de desenvolvimento, sem dúvida há num outro plano, uma sociedade que pré-existe ao indivíduo e que lhe subsistirá, mas um indivíduo não é definível, rigorosamente, nem por um nem pelo outro, não é redutível nem a um nem ao outro. Ele é um centro de atividade onde se completa a interação dos dois.  (Psychologie et Marxisme, p.  20)

 

Um indivíduo é este centro de atividade em que convergem muitas forças e seu desenvolvimento se dá através das relações dinâmicas com estas forças. Ele é constituído pelo patrimônio cultural de seu grupo e torna-se ele próprio parte constituinte deste patrimônio. Ele é abraçado pelo passado e pelo futuro de seu povo e de sua espécie. Para o homem, a sociedade é uma necessidade e uma realidade orgânica. Separar o indivíduo da sociedade seria retirar os músculos de seu esqueleto ou “descorticar-lhe o cérebro”.[21] Em cada ato, em cada pensamento, em cada postura, em cada olhar, podemos sentir todo este desenvolvimento histórico latejar em nossos músculos.

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NOTAS DE REFERÊNCIA

[1] in: René Zazzo, Psychologie et Marxisme, p. 19.

[2] Ver “Origines et actualité de la pensée de Henri Wallon” in: Zazzo, Psychologie et Marxisme; e “Stades et concept de stade de dévelopment de l’enfant dans la psychologie contemporaine” de Thran-Tong

[3] Wallon, La sensibilité affective: moi et non-moi.

[4] Wallon, As origens do caráter na criança.

[5] Piaget interessou-se exclusivamente neste aspecto que ele chamou de operativo. Em 1962  este brilhante autor reconheceu que o aspecto cognitivo não encerrava a natureza dos movimentos e nem dava conta de explicar os desdobramentos evolutivos que levam ao aparecimento da imagem e da consciência. Reconheceu a necessidade de se estudar também um outro aspecto, o figurativo. Considerou o trabalho de Wallon complementar ao seu  na medida que as propostas de Wallon enfatizam este aspecto figurativo. Ver o artigo "Le rôle de l'imitation dans la formation de la représentation" escrito por Piaget em 1962 para a revista Èvolution Psyquiatrique, um número em homenagem a Wallon, publicado meses antes de sua morte.

[6] Wallon, As origens do caráter na criança.

[7] Wallon, A atividade proprioplástica.

[8] Martinet, Théorie des émotions: introduction à l’oeuvre d’Henri Wallon.

[9] Wallon, La sensibilité affective: moi et non-moi.

[10] Hanley, The dynamic body image and the moving body: a theoretical and empirical investigation, p. 60.

[11] Antonio Damasio e Alain Berthoz são dois exemplos de pesquisadores atuais que chamam atenção para este ponto.  Os três livros de Damasio enfatizam o papel crucial da percepção do corpo e do mapeamento deste no cérebro para a manutenção da vida e posteriormente para o surgimento da consciência de si e do mundo. Berthoz enfatiza em seu livro “Les sens du mouvement” como a cinestesia é o principal sentido para a sobrevivência e como a constituição do corpo pelo sistema nervoso estabelece o ponto de referência para todos os possíveis.

[12] Wallon, Cinestesia e imagem visual do próprio corpo na criança.

[13] Wallon, As origens do caráter na criança, p.  44.

[14] Wallon, Do acto ao pensamentp, p. 303.

[15] Wallon, La sensibilité affective: moi et non-moi

[16] Wallon, As origens do caráter na criança, p.  12.

[17] Wallon, Cinestesia e imagem visual do próprio corpo na criança

[18] Martinet, Théorie des émotions: introduction à l’oeuvre d’Henri Wallon. p. 51.

[19] Wallon, Cinestesia e imagem visual do próprio corpo na criança, p. 105.

 

[20] Wallon, As origens do caráter na criança, p. 158 - 159.

[21] Wallon, As origens do caráter na criança, p. 11.

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            in: Luiz Soczka (org) Psicologia e Educação da Criança.Lisboa,Editora Veja, [1979]

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ZAZZO Renè (1975). Psychologie et Marxisme, la vie et l’oevre d’Henri Wallon. 

Meditations.

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