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Entre Sonhos e Átomos

por Hans Machado

Os dois principais instrumentos do curso de Formação Feldenkrais são awareness e movimento. Seguindo a herança das confusões culturais, muitos diriam se tratar de "consciência corporal", ou, da relação entre "mente" e "corpo", awareness e movimento. Mas será mesmo que somos feitos de duas camadas?

 

A Vida nos sobrepassa infinitamente e por todos os lados. Sabe-se-lá-deus quantas camadas existem entre a intenção e o músculo! Há certamente muito mais do que dois NÍVEIS DE ORGANIZAÇÃO entre a palavra a ser escrita e a ponta do lápis no papel. Quantas camadas você sente que existem entre as forças de resistência da caneta e o pensamento que organiza o conteúdo a ser escrito? Há certamente múltiplas camadas de "mente" e múltiplas camadas de "corpo".

 

Por razões justificáveis, nós tentamos simplificar tudo para poder lidar separadamente com os diferentes aspectos envolvidos no incessante fluxo de ação. Facilita fazer de conta que entre o cérebro e o osso só existe o músculo! Assim, podemos criar protocolos de aplicação e até mesmo fórmulas matemáticas para explicar como tudo funciona. Estes instrumentos lógicos (simplificadores) podem até ser úteis, mas não condizem com a vida que nos constitui. Quando os tomamos como se fossem a realidade, eles nos achatam demasiadamente. A confusão de se tomar um instrumento lógico como se fosse a natureza da vida, distorce nossa autoimagem, nos fragmenta e acaba criando um monte de outras mazelas. Entre o cérebro e o osso há uma pessoa constituida de vida.

 

A concepção de "mente" separada de "corpo" é muito nociva. A identificação de "eu" com a "mente" e a equiparação de "corpo" com uma "máquina" nos conduziram a uma condição de tremenda alienação. O corpo é expressão viva da natureza. Separar-se psiquicamente do corpo é distanciar-se da natureza. Basta observar a vida moderna para entender que alienar-se da vida é um erro grave, causa sofrimento à nível individual, social e ecológico, gera poluição e doença. A alienação corporal é este delírio em que o "corpo" é vivido como  algo alheio. É um estado interno, em cada indivíduo, que prepara condições para que sejam enraizadas engrenagens desvitalizadoras na praxis social. O resultado é a desregulação, o sofrimento e uma tentativa de regular as funções vitais pelo uso de medicamentos.

 

Sair deste delírio deveria ser uma prioridade em qualquer política de saúde. Entre as primeiras medidas nesta direção está a criação de uma autoimagem mais integrativa. Um estudo que conceba nossos diferentes aspectos como sendo camadas perpassadas de UM TODO FUNCIONAL  já é um início de cura. É necessário EXPANDIR A NOÇÃO DE EU incluindo o corpo e a vida em nossa identidade. Observando as camadas que nos constituem, vamos encontrar muitos fenômenos que pareceriam não ter nada a ver uns com os outros. Por exemplo, entre o sistema nervoso, os ossos e o sangue, vamos reconhecer a ação das poderosíssimas crenças e narrativas. Nos depararemos ainda com muitas outras "coisas", como as emoções e os sonhos. Veremos sonhos relacionados a objetivos de vida e aqueles outros sonhos da vida onírica, cada um atuando em diversas camadas e organizando em suas atividades um tanto das nossas porções constitutivas. Mas como é que os sonhos atuam? Ah, nesta pergunta existe uma linda abertura para começarmos a transformar profundamente nossa autoimagem.

 

Quem é que sonha as imagens oníricas? É a mesma entidade que se explica durante a vigília? Por outro lado, quem é que anda, senta e levanta em mim, diariamente, sem que eu tenha a menor noção de como estas ações complexas são feitas? É o corpo? Mais um exemplo: quando gero voz e falo, quem define o sotaque que, inconscientemente, envolve todas as minhas palavras e a entonação das frases? Quando investigamos estas noções de "quem atua" logo reconhecemos nossa tendência de atribuir a identidade de "eu" a tudo que acreditamos ser realizado por deliberação consciente. Se algo acontece em mim e não fui eu quem deliberou, então veio de alguma outra coisa que não sou eu. O "corpo", em geral, é visto como uma destas outras "coisas", e a "mente" é tida como sendo o "eu". Esta concepção permanece dominante em nosso imaginário, muito embora a quase totalidade dos processos "corporais" e "mentais" ocorram muito abaixo do nosso limiar perceptivo e portanto fora de qualquer deliberação.

 

Não foi de uma hora para outra que a nossa sociedade chegou à pandemia da alienação corporal. Somos herdeiros de uma longa tradição. Foi assim que chegamos aos meados de décadas passadas em que alguém se debruçou sobre a mente e disse: "consciente, subconsciente e inconsciente". Ótimo! Agora já teríamos três camadas de mente. É muito melhor do que supor que só existe uma e ainda acreditar que o "eu" é igual a "mente" e que o corpo não tem nada a ver com a história. Logo depois vieram outros e disseram "inconsciente coletivo" e ainda outros invocaram o "supra-consciente". Tudo isto foi muito bom.  É um ganho podermos apontar para a existência de uma escala de vários níveis de consciência-e-inconsciência. Só que a coisa é ainda mais complexa. Não dá para falar apenas de "mente", somos feitos de átomos! Você pode até tentar, pule o quanto quiser, mas você simplesmente não vai penetrar pelo chão da Terra. Somos matéria.

 

A intenção deste texto é primeiramente chamar a atenção para a COMPLEXIDADE da nossa constituição e evidenciar como somos louquinhos para criar modelos simplificadores da realidade. Em seguida, queremos indicar que é imprescindível percebermos que não somos constituídos por matéria inerte. Sim, somos seres materiais, mas somos matéria vivente. Somos vida! Quando morremos, os átomos continuam todos ali, ao bel fazer da Física. Nenhunzinho sequer desaparece junto com a nossa Presença Viva. Só que, logo que a vida se vai, nossos diversos componentes materiais começam a ser dispersados. E neste estado de coisas, ninguém confundiria os átomos que ficaram com a vitalidade que se expressava neles antes.

 

Não é óbvio? É. Mas precisamos querer ver. Quem mantém os átomos juntos em nossa fisiologia é a vida. As moléculas não saem por aí constituindo corações e pulmões. A expressão muscular no rosto e o brilho dos nossos olhos não decorrem puramente das leis da Física. Nosso ARRANJO MATERIAL é vivo e precisa ser constantemente mantido pela dança de diversas INTELIGÊNCIAS. É neste ponto que queremos chegar, nas relações entre as inteligências que organizam nossas camadas de existência, e, neste vislumbre, iluminar a experiência ativa que podemos viver dentro desta dinâmica.

 

O ESTRAMBÓLICO é que, por uma longa tradição cultural, fomos levados a viver como se as inteligências da vida estivessem separadas de "nós" por abismos intransponíveis. Por um lado, as leis do mundo material regeriam o "corpo", e a "mente", por sua vez,  viveria em outro mundo. Nossa sociedade decidiu fazer de conta que os fenômenos que emergem no  "corpo" não têm nada a ver com a pessoa que é o corpo! Hoje em dia achamos a coisa mais natural do mundo que todos estejam agindo como se os processos vitais que nos constituem não estivessem relacionados com os personagens que metabolizamos em nossas carnes.

 

A dissociação é profunda e acaba funcionando assim: à medida que vamos nos desenvolvendo desde o nascimento, estabelecemos em nós padrões de funcionamento que naturalmente geram consequências em todas as camadas vivas que nos constituem. Mais tarde, ao vivermos estas mesmas consequências, sentimos que somos vítimas de fatores externos. Vítimas do mundo material da vida que, afinal, é externa a nós. Quem dói é a coluna, quem tem problemas é o joelho, a pisada é que é torta, o intestino é que anda mal e assim por diante. Percebem o tamanho da loucura?

 

É como se as células do "corpo" não fossem responsivas às emoções que movem a vida. Mas espere um pouquinho, as emoções são feitas de comportamento celular! Durante a experiência de ansiedade, por exemplo, só podemos identificar a participação de moléculas de adrenalina e de cortisol porque muitas células se comportaram de modo a lançar grandes quantidades destas substâncias no sangue. Não é possível pensar nossa materialidade sem a emoção. A biologia definitivamente não é mecânica, neutra e indiferente às "camadas psíquicas". O sangue não é um repositório de moléculas, é um meio constitutivo, por onde percorrem as ações dos nossos pensamentos e emoções, estes mesmos totalmente dependentes das nossas proteínas e mitocôndrias. 

 

Mas sempre existe a possibilidade do faz de conta, e assim a sociedade segue operacionalizando vidas com base na cisão mente-corpo. Tratamos, por exemplo, a restrição de movimentos cervicais em idosos como se fosse um traço natural da "idade da máquina". O vitimismo de CONCEBER-SE assim gera limitação, desequilíbrio e fragmentação. Todos vivenciamos esta insanidade coletiva. É por isso que levamos o corpo aos especialistas de cada uma de suas partes e acabamos tendo de levar a nossa mente para seus outros especialistas.

 

É fácil notar, no entanto, que uma porção imensa das limitações dos idosos é consequência da EXPRESSÃO CRÔNICA DE UMA AUTOIMAGEM que durante anos e anos propôs o posicionamento da cabeça, dos ombros e do peito, de uma forma tal, que veio a criar esta restrição.  Quando nos damos conta do papel tão definidor que a autoimagem exerce sobre toda a fisiologia do corpo e sobre a saúde dos movimentos, reconhecemos a urgência de conceber uma nova imagem da vida que nos faz materialmente inteligentes e adaptáveis. Criar esta imagem vital, não apenas conceitualmente mas principalmente pela relação sensorial com as inteligências o corpo, abre caminhos para a flexibilidade e para a expressão de toda a potência orgânica.

 

O tradicional desprezo às inteligências vitais nos faz dar mais valor aos livros e aos especialistas do que às sensações diretas da vida que nos dá existência. Um PASSO TRANSFORMADOR no sentido da integração é transcender o conceito de corpo-máquina e passar a SENTIR A VIDA do organismo que nos constitui. É uma mudança de atitude. Quando passamos a VALORIZAR as próprias sensações, começamos a sair do delírio cultural de vitima das leis mecânicas e passamos a perceber, em primeira mão, a vitalidade das inteligências atuando dentro de nós mesmos. Logo veremos que elas atuam em função das nossas atividades e escolhas. Junto com a capacidade de sentir, ganhamos saúde e autonomia. 

 

Este passo é um dos atos mais determinantes que podemos realizar sobre nós e sobre o mundo, e só depende de cada um. Pare por alguns instantes e interrompa o fluxo de reatividade. Sinta a si mesmo como a manifestação vivente deste estado em que você se encontra. Realize alguns movimentos cuidadosos, mergulhando na cinestesia e permitindo que sua imagem de si mesmo se renove a partir destas percepções e dos efeitos que elas promovem. Pode parecer bobo, mas quando esta proposta é vivenciada os efeitos são absolutamente surpreendentes. Este é um dos primeiros processos que caracterizam o Método Feldenkrais: criar intimidade sensorial consigo mesmo.

 

Ao voltarmos nossa atenção (tão sagrada!) à atividade da vida em nós, reconheceremos que as inteligências orgânicas estão em toda a parte e que, além de serem muito ativas, elas são extremamente sensíveis e responsivas. Basta realizarmos um pequeno movimento, ou até mesmo só imaginarmos o movimento, e inúmeras reações podem ser percebidas no corpo. Todas as emoções, todos os pensamentos e todos os movimentos se perpassam de modo mutuamente determinante. O nosso ritmo cardíaco, por exemplo, não segue uma marcha fixa e pré-definida. Longe disto! Há um ajuste constante a cada situação. O fluxo sanguíneo, assim como a AÇÃO POSTURAL, é uma expressão instantânea do "estado mental" em atividade.

 

É a partir da orquestração desta confluência de inteligências que nós aparecemos a nós mesmos como presença no instante agora. Um momento de awareness é uma experiência cúmplice desta maravilha. Cada minúcia de cena vivida é a expressão de um FLUXO DE COMPLEXIDADE ATIVA. A mais simples das nossas ações depende de uma COESÃO MÍNIMA entre milhões de fatores. Embora seja óbvio, é preciso ressaltar que as inteligências da vida SABEM INTEGRAR. São elas as responsáveis pela integração geral do organismo-pessoa. Se elas não soubessem articular toda esta complexidade, e se não o fizessem continuamente, nós nos desintegraríamos por completo. É possível viver fragmentado, mas desintegrado, não.

 

Foi no século XIX que começaram a utilizar a expressão "AUTO-REGULAÇÃO" para se referir à capacidade que os organismos exibem de gerenciar um fluxo colossal de informação e de transformações, mantendo-se sempre no equilíbrio dinâmico que sustenta a continuidade da vida. Mas, novamente, pela tradição do paradigma mecanicista predominante, criou-se a impressão de que esta admirável regulação era realizada por um corpo-máquina, bem distante de nós, operando lá do outro lado do abismo. Afinal, todas estas ações biológicas faziam parte do indigesto mundo da animalidade, do corpo e suas baixezas. O "eu" seria algo superior, identificado com o mundo do intelecto, da razão. Não foi à toa que todo o nosso sistema de escolarização se tornou um longo e intenso treinamento do intelecto.

 

Foram necessárias várias novas décadas até que começaram a surgir, neste fluxo de herança europeia, importantes desbravadores, como Moshe Feldenkrais, Gerda Alexander e alguns outros, que se dispuseram a cruzar o abismo do abstracionismo e mergulhar diretamente na Experiência Viva. Foi aí que a auto-regulação começou a ser vivenciada em primeira pessoa. Nascia a Educação Somática, práticas baseadas em movimento nas quais o sujeito se identifica com a vida em seu próprio corpo. Esta novidade fez as vértebras, a pelve e o pulmão, deixarem de ser um mecanismo alheio e passarem a ser uma PRESENÇA VIVA, espelhante de todas as dimensões da vida.

 

Para nós na Formação Feldenkrais, movimento e Awareness são os principais instrumentos. É na dança entre estas duas camadas de ação que surge a integratividade. Os movimentos são realizados de modo a estimular as inteligências orgânicas, convidando-as a uma participação mais ativa.  Com "mais ativa" quero dizer mais expressiva e adaptável, menos repetitiva, estereotipada e rígida. Nossa estratégia peculiar é usar o movimento para buscar o Todo.

 

A escuta faz toda a diferença. Nas sequencias de percepção-em-movimento, aprende-se a escutar a expressão deste mundo vivo. Aprendemos a nos entregar às capacidades integrativas inerentes ao movimento e deixamos que se criem relações onde antes havia fragmentação.  Pouco a pouco, as distâncias entre as "partes" passam a ser preenchidas com Presença Vital. O nível da coesão mínima é largamente ultrapassado. Como resultado, vemos diversas camadas da nossa constituição se reorganizando. Deste relacionamento ativo com a vida no próprio corpo, surge o frescor de uma nova autoimagem, certamente mais integrada. Assim como a fragmentação e a alienação corporal são enfermidades culturais, acreditamos que a integração do indivíduo seja uma cura social.

 

Talvez, o ato de criar uma imagem de si seja o mais crucial de todos os atos possíveis, porque dele depende a maior parte da nossa experiência de vida, incluindo nosso metabolismo e nossas relações humanas e ambientais. Nossa ambição com o Método Feldenkrais é desenvolver as habilidades necessárias para criarmos uma autoimagem integrativa, viva e flexível. Compreendendo que nossas ações não nascem e se encerram em nossos próprios braços. Somos constituídos e impulsionados por matéria viva e ativa. A vida nos move e neste impulso é que vivemos. Tal como a onda do mar eleva uma prancha, somos os surfistas. Nossa atenção é a principal de nossas quilhas. Não criaremos o Oceano, mas inventaremos nossos movimentos. Não lutaremos contra os ventos, pelo contrário, nos entregaremos a eles para poder CRIAR DIREÇÃO.

 

Sentir-se é um gesto de criação. Conceba-se!

 

(Texto escrito como material da Formação Feldenkrais Teiativa)

 

Ilustrações, na ordem em que aparecem:

1) School boy writing (Don Purcell);

2) Layers of life (Pix Byron);

3) ManMachine1 (Internet);

4) Coesão (Paulo Leite).

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